Assassinatos de LGBT’s no Brasil: o que revelam as estatísticas?

por inquietar

Hoje foi divulgado o relatório anual do GGB, segundo o qual, em 2012, foram mortos no Brasil 338 LGBT’s devido a sua orientação sexual. Isso representaria um aumento de 26% em relação aos dados do ano passado. Assustador? Com certeza. Entretanto é preciso se perguntar o que exatamente esses números significam.

A primeira pergunta que deve ser feita é: como esses dados foram coletados? Basicamente o que o GGB faz é coletar e compilar notícias da imprensa referentes a morte de LGBT’s. A reportagem do Ig fala também em “informações coletadas por Organizações Não-Governamentais (ONGs)”, mas não explica o que isso significa, então não sei de onde veêm os dados repassados por essas organizações. Pode ser que elas apenas ampliem o trabalho do GGB – compilando as noticias sobre mortes LGBT na região em que se encontram – ou podem possuir outros mecanismo sem ser a impressa para pautar suas estatísticas.

De qualquer forma é possível aferir que boa parte das mortes citadas no relatório advém da imprensa. E isso torna muito complicado afirmar – cientificamente – que houve aumento no assassinato de LGBT’s. O que se poder afirmar é que houve aumento na PUBLICAÇÃO DE NOTÍCIAS sobre a morte de LGBT’S, o que é bem diferente.

Esse aumento pode ser fruto de outra questão também: como o GGB não informou – nos dados que eu tive acesso – quais meios de comunicação foram monitorados, a simples inclusão de mais meios produziria um aumento estatístico. Digamos que para realizar a estatística o grupo monitores, todos os dia, um jornal de cada capital brasileira. Se no ano posterior passar a monitorar dois jornais de cada capital, as estatísticas tendem a aumentar.

Há uma outra dificuldade: se no estado da Bahia o GGB monitora todos os jornais de grande circulação, os principais portais de noticias e o noticiário local da televisão e no Distrito Federal monitora apenas o Correio Brasiliense, é óbvio que há uma desigualdade entre os dados obtidos. Afirmar que uma região é mais homofóbica que a outra vira apenas golpe de retórica, sem respaldo na realidade. Só para constar, em 2011, segundo esse relatório, houve apenas 1 morte por homofobia no DF e nenhuma no Acre e em Roraima. O Acre é a terra prometida para os LGBT’s? Ou simplesmente o que acontece lá tem dificuldade de chegar até o litoral?

É difícil realizar levantamentos estatísticos referentes a violência no Brasil porque não existe uma padronização por parte das delegacias na divulgação dos crimes praticados na região. Uma vez eu peguei um relatório sobre homicídios que não trazia sequer o sexo da vítima, quanto mais o tipo de crime cometido. Nesse sentido, levantamentos como o do GGB são legítimos. Entretanto, é preciso ter cuidado ao trabalhar com os números ou eles servirão apenas para a desinformação.        

Outra coisa que me chamou atenção na reportagem e que me fez buscar mais informações sobre o relatório foi a inclusão – no número final de mortes – de “suicídios, casos em que as vítimas foram confundidas com homossexuais e mortes de brasileiros no exterior”. Eu concordo com o segundo item: tratando-se de crime de ódio tanto faz se o sujeito era homossexual ou se foi confundido com um; é crime de ódio do mesmo jeito.

Agora misturar suicídios com homicídios contribui em que, exceto em inflar o número final de mortes? A homofobia pode levar ao suicídio? Com certeza, mas várias outras coisas também podem: perdas financeiras, decepção amorosa, desentendimentos familiares, distúrbios químicos, drogas, entre outros. Supor que um suicídio aconteceu devido a homofobia simplesmente porque o individuo era gay é distorcer a situação. E ainda que fosse possível comprovar que foi o desconforto com a própria sexualidade que levou ao suicídio, porque misturar as duas coisas? Porque não fazer estatísticas separadas? Ainda que a homofobia esteja na raiz dos dois problemas, e que campanhas educacionais tenham efeito redutor em ambos, cada questão exige uma política pública diferente. No caso dos suicídios é preciso oferecer suporte psicólogico; no caso dos homicídios investigação policial e punição.

E há um outro problema, uma dado mascara o crescimento do outro. Digamos que os homicídios comecem a cair mas os suicídios comecem a crescer vertiginosamente. Como os dois dados são tratados como um único número, ninguém perceberia o crescimento dos suicídios.

O mesmo vale para “mortes de brasileiros no exterior”, que apenas inflam o número final. Em que uma política pública brasileira de combate a homofobia contribuiria para o fim da homofobia na Inglaterra? Pouco ou quase nada né? Se a idéia é alertar os LGBT’s sobre os países mais perigosos para se visitar o ideal seria montar uma estatística a parte, especificando o país e as condições do assassinato. Se a idéia é convencer o governo a oferecer um suporte específico a LGBT’s nas embaixadas brasileiras, o ideal seria ter uma estatística a parte que demonstrasse a necessidade dessa ação.

Observando a planilha de parte do relatório de 2012 é possível verificar que são poucas as mortes decorrentes de suicídos ou realizadas no exterior e que portanto a inclusão delas não invalida totalmente o resultado final. Inclusive é provável que a decisão de incluir essas mortes na estatística geral decorra do fato delas serem mirradas demais para constituir uma estatística a parte. Entretanto, seria de bom tom da parte dos pesquisadores deixar claro que o número final citado por eles inclui suicídios e gente que não morreu no Brasil. Qualquer coisa diferente disso compromete a lisura e a qualidade da pesquisa.

Outra coisa interessante de pensar é nos critérios para a inclusão de mortes nessa estatística. A planilha de 2012 possui uma coluna com a motivação do crime. O dado está em branco na maior parte dos crimes, entretanto é possível ver vários marcados com “drogas” e também “latrocínio”. Um homossexual que é assassinado em função de uma dívida de droga é vítima da homofobia? Um crime cuja a motivação seja financeira (receber uma dívida) pode ser considerado como crime de ódio? Em que campanhas de conscientização sobre a homossexualidade contribuiriam para evitar essas mortes?

Uma prática comum do GGB quando contestado a respeito dos critérios para separar mortes decorrentes da homofobia ou não, é afirmar que mulheres e negros não precisam explicar suas estatísticas de machismo e racismo. Ok, a crítica é válida, existe muita estatística picareta por aí. Não muda o fato de que uma mulher assassinada por uma dívida de droga é vítima do tráfico de drogas e não do machismo. Se alguma ONG afirmasse que 34.983**  negros foram assassinados em decorrência de crime de ódio, estaria sendo leviana. É interessante analisar certos fenômenos, como o tráfico de drogas, sobre uma ótica racial ou de genêro. Permite ampliar a perspectiva sobre o problema e pensar em novas formas para combate-lo. Entretanto é fundamental não confundir essa análise conjuntural com a produção de estatística. Misturar crimes de ódio com crimes comuns só prejudica a compreensão do que está sendo analisado.

Outro ponto interessante a observar é a quantidade significativa de vítimas de homicídio que trabalham como profissionais do sexo. Vale a pena refletir se essas mortes são decorrentes de homofobia ou se são consequência das condições precárias de trabalho. Um profissional do sexo que trabalha por conta própria, nas ruas, sem nenhum suporte que lhe garanta segurança corre muito mais risco de ser assassinado do que alguém que trabalhe numa casa destinada a esse fim. Um cliente mal-intencionado, que não pretende pagar pelo serviço, certamente recorreria ao profissional do sexo do primeiro caso. Caso o objetivo fosse desenvolver uma ação para inibir esse tipo de homicídio, o ideal seria regulamentar e oferecer estrutura a prostituição e não necessariamente combater a homofobia. É claro que um profissional do sexo não é necessariamente assassinado pelo seu cliente. Por isso é importante analisar com cautela cada crime para saber se trata-se de homofobia ou não.

Outra dificuldade são os crimes passionais. Quando uma pessoa é assassinada pelo cônjuge é homofobia? É um crime de ódio? A possessividade dos relacionamentos afetivos pode ser associada a homofobia – ou seja – ao medo irracional de LGBT’s? Acredito que eventualmente até pode ser – um cônjuge pode matar o parceiro para evitar que esse leve a público o relacionamento dos dois. Entretanto, muitos desses crimes são frutos de ciumes excessivos, possessividade, dificuldade em aceitar o fim do relacionamento… Estão muito mais associados ao conceito de machismo do que de homofobia.

A homofobia no Brasil não precisa ser inventada – ela já existe. Não há motivo para inflar os dados a respeito. Criar um clima de terror NÃO contribui para o combate a homofobia. Estatísticas como essa pautam falas de deputados, contribuem para a criação de políticas públicas. E pautar políticas públicas a partir de estatísticas errôneas é o maior tiro no pé que uma comunidade pode dar. Cria políticas públicas com vícios de origem, inapropriadas por definição. E qualquer ONG que exija do governo qualidade estatística e transparência deve começar garantindo a qualidade e a transparência dos próprios trabalhos.    

* Grupo Gay da Bahia
** Número de mortes de negros e pardos em 2010